Reforma tributária é agenda em disputa, aponta pesquisadora em debate do Fórum

Reforma tributária é agenda em disputa, aponta pesquisadora em debate do Fórum

Novos parâmetros de financiamento para as universidades entram em pauta em momento de potencial ataque à autonomia

A Escola de Artes, Ciência​s e Humanidades (EACH), a USP Leste, foi palco do debate “Financiamento e garantia da autonomia das universidades estaduais paulistas: impactos da reforma tributária”, o segundo promovido pelo Fórum das Seis sobre o tema este ano. Fruto da expansão do início dos anos 2000, a unidade é hoje a terceira maior da USP em número de estudantes e, assim como as demais, se ressente da falta de contratações. “A escolha da EACH para sediar o debate é simbólica em relação ao tema deste debate, pois estamos falando aqui de financiamento e autonomia”, disse a coordenadora do Fórum, Michele Schultz, ao abrir a atividade.

Ela lembrou que a autonomia das estaduais paulistas completa 35 anos, fruto da grande greve de 1988, que culminou na assinatura do decreto nº 29.598/1989 pelo então governador Orestes Quércia. A dotação orçamentária própria que as instituições têm hoje teve início naquele momento, com a definição de um percentual fixo de repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que foi subindo nos anos seguintes, fruto de lutas dos movimentos, até chegar nos 9,57% da quota-parte do Estado (QPE) em 1995, patamar mantido até hoje, apesar do enorme crescimento.

Michele voltou a criticar a postura do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp), que se recusa a debater uma proposta conjunta com o Fórum, frente às mudanças que virão com a reforma tributária. “É evidente que teríamos mais forças para fazer os embates na Assembleia Legislativa e com o governo”, disse. O GT Verbas da Adusp, que conta com a participação de outras entidades do Fórum,​ desenvolveu estudos e chegou a uma proposta para substituir o ICMS, imposto que será extinto progressivamente a partir de 2026, até ser substituído totalmente pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em 2033. Um dos debatedores, Márcio Moretto, professor da EACH e membro do GT Verbas, discorreu sobre a proposta durante o evento. Antes dele, porém, falou a professora Ursula Dias Peres, também da EACH e pesquisadora das áreas de Economia Política do Orçamento Público e Financiamento de Políticas Públicas.

Agenda em disputa

“Essa é uma discussão fundamental não só para as universidades, mas para qualquer pessoa desse país”, frisou Ursula logo ao começar a apresentação. Ela resgatou as discussões que antecederam a aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional em dezembro passado, já sancionada como Emenda Constitucional nº 132/2023.

“A estrutura tributária brasileira sempre teve um viés anticrescimento, fonte permanente de conflitos federativos, com a guerra fiscal entre estados e municípios, e um forte efeito regressivo sobre a distribuição de renda”, resumiu. Como exemplo, citou a legislação complexa, a profusão de alíquotas, o excesso de benefícios fiscais e regimes especiais, além de problemas de cumulatividade.

Com a reforma, será criado o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), dividido em dois grandes impostos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), no âmbito federal e que agrupa os atuais PIS, Cofins, IOF e IPI; e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), para estados e municípios, em substituição ao ICMS e ISS. Os novos impostos serão implantados progressivamente; o IBS será instituído a partir de 2026, com uma alíquota de 0,1% estadual, percentual que irá subindo até a extinção total do ICMS e do ISS em 2033. Neste período, cresce a importância da definição de um fundo de compensação para estados e municípios, ainda a ser regulamentado no Congresso. “Trata-se de um processo longevo de transição, em que será necessário que os entes federativos acompanhem os rumos da arrecadação, pleiteando eventuais compensações à União”, pontuou a docente.

Ursula vê com bons olhos a reforma tributária em curso, por simplificar a legislação e aplacar a guerra fiscal, o que tende a favorecer os estados. Mas assinala que ainda haveria um longo caminho a percorrer para atacar a enorme desigualdade social no Brasil. “Teremos que ir para a segunda parte da reforma, com tributação mais eficaz sobre os 10% mais ricos do país, pois somos uma das nações mais desiguais do mundo.”

Foto para o meio do texto Debate promovido pelo Fórum das Seis na EACH – USP Leste

Proposta do GT Verbas é 8,64% das Receitas Tributárias Líquidas

Márcio Moretto relatou que o GT Verbas vem se debruçando há anos sobre os números que cercam o financiamento das universidades estaduais paulistas. “Com a extinção do ICMS, será preciso definir um novo formato para o financiamento destas instituições, que terá que ser negociado com o governo Tarcísio de Freitas e a Assembleia Legislativa”, enfatizou.

Como fruto da autonomia conquistada no início de 1989, Unesp, Unicamp e USP passaram a ser financiadas pelo ICMS, mais especificamente, 9,57% da Quota-Parte do Estado (QPE), que corresponde a 75% do total do total arrecadado. Desse percentual, a Unesp recebe 2,34%, 2,19% vão para a Unicamp e 5,02% para a USP.

“Nós vimos apontando que a base de cálculo sobre a qual incidem os 9,57% é subestimada”, frisou Márcio, referindo-se aos itens que são retirados da conta antes do repasse. Ele também citou o expressivo crescimento das universidades desde 1995, quando foi definido o percentual de 9,57% do ICMS-QPE vigente até hoje (veja quadro elaborado pelo Fórum das Seis). “Além disso, temos o risco concreto de que o governador tente inserir duas instituições, a Famema e a Famerp, dentro dos 9,57%, o que pode ocorrer no envio do projeto de Lei Orçamentária Anual de 2025”, disse.

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Com este cenário em vista, o GT Verbas trabalhou algumas propostas para a substituição dos 9,57% do ICMS. Entre elas, a considerada mais adequada é a de 8,64% das Receitas Tributárias Líquidas (RTL) do estado. No período de transição (2026 a 2033, quando o ICMS será extinto progressivamente), será necessário negociar, também, formas de compensação para as universidades.

A proposta defendida pelo GT criado pelo Cruesp para estudar o assunto é semelhante à do Fórum (os reitores propõem 8,63% das RTL), o que torna ainda mais retrógrada a postura de não unificar as forças em defesa do financiamento adequado para as universidades.

“Mais do que uma questão técnica, a definição de um novo formato de financiamento para estas instituições é essencialmente política e exigirá mobilização da comunidade acadêmica”, alertou o debatedor.

Na Constituição ou em novo decreto?

É o decreto que estabeleceu a autonomia, nº 29.598/1989, que determina o financiamento das universidades com base num percentual da quota-parte do estado no ICMS, que se mantém em 9,57% desde 1995. Todos os anos, o percentual é inscrito na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA) que o governo envia à Assembleia Legislativa.

E como ficaria a situação com a mudança no formato do repasse? Uma das possibilidades sempre lembrada é a inserção do percentual na Constituição paulista, semelhante ao que ocorre com a Fapesp. No debate, o assunto foi levantado novamente. A coordenadora do Fórum citou situações de outros estados, como o Rio de Janeiro, que chegou a inscrever em sua Constituição uma dotação fixa para as universidades estaduais, decisão posteriormente revogada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião do julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.102-RJ, em outubro de 2014). O entendimento do STF foi de que não cabia à Constituição do estado, ou lei infraconstitucional, vincular qualquer percentual ou valor orçamentário a determinado destino específico, salvo no caso das agências de fomento à pesquisa, pois para estas há previsão constitucional federal neste sentido.

“Precisamos estudar isso e tudo o que envolve o assunto, para termos clareza sobre o melhor caminho a percorrer”, apontou.           

Financiamento e autonomia em risco. É hora de mobilização

Na parte destinada às perguntas, durante o debate na EACH, várias pessoas externaram preocupação quanto à correlação de forças necessária para garantir um novo parâmetro de financiamento junto ao governo estadual e à Alesp. Foram citados os ataques à Fapesp (a LDO/2025 foi aprovada com a possibilidade de corte de até 30% do orçamento da agência no próximo ano); a tramitação da PEC 9 (que prevê a redução dos recursos da educação pública paulista de 30% para 25% dos recursos do Estado); a privatização de órgãos públicos, como a Sabesp (já aprovada), o Metrô e a CPTM; a reforma administrativa; entre outros.

Além disso, quando enviou sua proposta de LDO/2025 para a Alesp, em maio/2024, o governador tentou arrochar os repasses para Unesp, Unicamp e USP, inserindo no mesmo montante de recursos três outras instituições as Faculdades de Medicina de Marília e de São José do Rio Preto (Famema e Famerp) e a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). A reação da comunidade interna e externa, inclusive dos reitores, forçou um recuo do governador e o ‘jabuti’ foi retirado. Mas a ameaça ainda paira no ar: há informações de que, na LOA, quando são traduzidos em valores os percentuais aprovados na LDO, o governador pretende inserir Famema e Famerp dentro dos 9,57%. O projeto de LOA/2025 deve chegar à Alesp até 30/9.

Outra apreensão levantada pelos presentes foi quanto ao projeto de lei (PL) 672/2024, de autoria do deputado Leonardo Siqueira (Novo), que estabelece cobrança de mensalidades nas estaduais paulistas, um velho desejo dos inimigos da educação pública (leia matéria na página 4).

“É com esse governo e com essa composição na Alesp que deverá ser negociada a definição de um novo formato de financiamento para as universidades estaduais paulistas”, destacou Michele Schultz, conclamando a comunidade acadêmica a se mobilizar. “O risco é grande, temos que estar preparados para luta.”

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A íntegra do debate

A gravação do debate “Financiamento e garantia da autonomia das universidades estaduais paulistas: impactos da reforma tributária?” pode ser conferida em:  https://bit.ly/f6deb190924

Materiais de consulta

- Exposição da professora Ursula Dias Peres: https://bit.ly/debursula 

- Exposição do professor Márcio Moretto: https://bit.ly/apresms 


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