Seminário do Fórum das Seis - “Entre a sereia e o vigário”, marco legal de C&T e fundos patrimoniais colocam educação e ciência públicas a reboque dos interesses do capital

Seminário do Fórum das Seis - “Entre a sereia e o vigário”, marco legal de C&T e fundos patrimoniais colocam educação e ciência públicas a reboque dos interesses do capital

Parte do título de uma tese de doutorado sobre o novo Marco Legal de C&T e Inovação, defendida na UFSCar, em 2021, a frase “entre a sereia e o vigário” traduz a visão dos debatedores que participaram do seminário sobre “Política de C&T e mercantilização das universidades e dos institutos públicos de pesquisa”, promovido pelo Fórum das Seis e a Regional SP do Andes – Sindicato Nacional. A atividade aconteceu na USP, em 1º/7, e teve transmissão ao vivo pelo Youtube (assista em https://youtu.be/LgroUT84fbI). 

O objetivo do evento foi estimular a continuidade dos debates sobre o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Informação (MLCTI), Lei 13.243/2016, e a respeito dos fundos patrimoniais (endowments), temas que guardam relação direta com o cotidiano da comunidade acadêmica e científica do país.

O seminário foi dividido em duas mesas, com abordagens cruzadas sobre os dois assuntos, uma delas conduzida por Maria Silvia Viccari Gatti, vice-presidenta da Adunicamp e representante do Fórum das Seis, a outra por Michele Schultz, presidenta da Adusp e representando a regional SP do Andes na atividade.

Para Érico Lopes Pinheiro de Paula, autor da tese citada no início do texto – “Entre a sereia e o vigário: discursos sobre Ciência, Tecnologia & Inovação no campo científico brasileiro”, um dos debatedores convidados, a coalizão de pensamentos e ações – de empresários, acadêmicos, gestores públicos e investidores privados – que culminou na aprovação do MLCTI em 2016 teve como base uma percepção parcial e insuficiente sobre os problemas que afetam a produção do conhecimento e a atividade industrial no Brasil. Em sua pesquisa, ele fez um extenso levantamento dos discursos das várias entidades envolvidas no debate sobre o assunto – como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), entre outras –  e detectou que o lastro da argumentação em favor de uma nova regulamentação para o setor era, principalmente, a insuficiência do financiamento público para a ciência, tecnologia e inovação, além da excessiva burocratização para acesso aos recursos destinados. Nas universidades e institutos públicos de pesquisa, ainda de acordo com o discurso predominante em favor do novo marco legal, os problemas se desdobravam em servidores mal remunerados e carreiras pouco atrativas. A solução, conforme consta nas justificativas do MLCTI, seria o estreitamento das relações entre o setor público e as empresas para impulsionar a produção do conhecimento científico e tecnológico.

Para o expositor, no entanto, esse rol de justificativas não se sustenta. “O problema não está na estrutura da produção de conhecimento universitário, mas sim no subfinanciamento crônico, e isso exige mais estado e não menos”, frisou. Em relação aos problemas ligados à produtividade do trabalhador brasileiro, ao PIB per capita e às desigualdades entre classes e entre regiões, também apontados como justificativas pelos defensores da nova legislação, Pinheiro de Paula apontou: “Esses problemas decorrem da estrutura da manufatura e da pauta de exportações, o que exige projeto nacional e investimentos de longo prazo para serem alteradas.”

O professor Marcos de Oliveira, da Faculdade de Educação da USP, outro dos debatedores presentes, corrobora a percepção de Pinheiro de Paula e vê aí uma das principais razões para a baixa produção de inovações nos últimos 20 anos no Brasil. Para ele, as causas desse fracasso residem não em deficiências na legislação referente às atividades de pesquisa, ou numa suposta falta de “cultura da inovação” entre empresários e acadêmicos – questões que, segundo os defensores do MLCTI, seriam solucionadas a partir de sua aprovação – mas em fatores estruturais, essencialmente o papel de exportador de commodities  desempenhado pelo Brasil na divisão internacional do trabalho, com a associada desindustrialização da economia.

Oliveira questiona também o movimento ‘inovacionista’ que tem marcado as últimas duas décadas no país. “O inovacionismo postula a produção de inovações como a função primordial da pesquisa científica e entende por inovação as invenções rentáveis, que possam ser implementadas por empresas e maximizar seus lucros, em claro menosprezo às pesquisas que levam benefícios à população, embora não sejam rentáveis para as empresas.

Lembrando que foram poucos os setores que criticaram a aprovação do novo marco legal, entre eles as associações de docentes por meio do Andes-SN, o professor da USP citou movimentos criados para apresentar um contraponto crítico ao novo marco legal, como o MCTP - Movimento pela Ciência e Tecnologia Pública (https://ctpublica.wordpress.com), e iniciativas do Andes-SN, que produziu uma cartilha intitulada Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/16): riscos e consequências para as Universidades e a produção científica no Brasil. Entre os “dispositivos privatizadores” contidos na lei e criticados por estes setores, resgatou Oliveira, estão o estabelecimento da possibilidade de criação de Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICT), na forma, entre outras, de Organizações Sociais (OS) e de Núcleos de Inovação Tecnológica (NIT) de direito privado no interior das instituições públicas, com o objetivo de receber recursos públicos dos entes federados e de fundações ditas ‘de apoio’ para a cobertura de todas as suas despesas; usufruir de pessoal especializado (pesquisadores etc.) pagos com recursos públicos; utilizar infraestrutura e recursos públicos em atividades de pesquisa para empresas privadas.

Os fundos patrimoniais e a disputa pelos recursos públicos 

Viviane Queiroz, uma das debatedoras durante o seminário, abordou um tema relativamente recente no Brasil: os fundos patrimoniais, os chamados ‘endowments, e sua relação com as universidades públicas. O assunto é tema de sua tese de doutorado defendida na UERJ, em 2021.

“Os fundos patrimoniais são mais uma agenda do capital, dentro das várias experiências da relação público-privada”, resumiu logo no início de sua exposição. E explicou: “Esse mecanismo compõe uma nova face privatizante das universidades públicas brasileiras e constitui-se como fundo filantropo-mercantil, um mecanismo que converte as políticas sociais em mercadorias comercializadas – uma nova tendência filantrópica mercantilizada”. Em fase de regulamentação e estruturação em nosso país, em processo ainda não plenamente consolidado, os fundos têm como referência o modelo estadunidense, apresentado como ideal a ser seguido no Brasil, “em particular, quanto aos incentivos fiscais”, pontuou. No Brasil, os fundos patrimoniais são regidos por um conjunto de regulamentações: o MLCTI, a MP 851/2018 e a Lei 13.800/2019.

Sob o discurso das “doações”, enfatizou Viviane, os fundos patrimoniais direcionam sua atuação para o que ela nomeia como “filantropia de investimento”. Embora criados por entidades sem fins lucrativos, os fundos apresentam estrutura financeira. No Brasil, atualmente há 52 fundos patrimoniais, sendo 38 no estado de São Paulo. Os pioneiros foram criados por grandes bancos, como Bradesco e Itaú. O fundo vinculado à Fundação Bradesco, por exemplo, com patrimônio em torno de R$ 65 bilhões, ironicamente é o maior acionista do grupo Bradesco.

Em troca de destinar uma minúscula parte do rendimento de suas doações à pesquisa – o capital principal não pode ser mexido – os fundos configuram-se em mais um forte mecanismo de lucratividade por meio da privatização e disputa dos recursos públicos, resumiu a expositora, referindo-se à isenção de impostos e aos benefícios fiscais garantidos a eles.

Transposta para as universidades públicas sobre a base da argumentação da “ausência de recursos e necessidade de ampliar os investimentos em pesquisa, a experiência dos fundos patrimoniais teve início em cursos específicos, hospitais universitários e outros, como o “Amigos da Poli”, vinculado à Escola Politécnica da USP. O primeiro fundo patrimonial ligado a uma universidade é o Fundo Centenário da Escola de Engenharia da UFRGS, criado em 2019. Mais recentemente, Unesp e Unicamp autorizaram a criação de um fundo patrimonial para compor o financiamento de projetos e iniciativas nas áreas de ensino, pesquisa, extensão e inovação

Como explicou a palestrante, da mesma forma que ocorre com os grandes fundos vinculados aos bancos, nas universidades há a garantia de isenções e benefícios fiscais; somente uma pequena parte do rendimento oriundo das doações é aplicada em projetos de pesquisa e a decisão sobre quais serão beneficiados deriva dos interesses da iniciativa privada e dos empresários, estudantes-pesquisadoras/es estão a serviço das empresas.

“O tema é mal-entendido no Brasil”, ressaltou Otaviano Helene, do IF-USP, também debatedor no evento. A justificativa para a adesão das universidades públicas aos fundos seria a bem-sucedida experiência em outros países, onde eles se constituiriam como fonte importante de receita para instituições públicas. “No entanto, vemos que, em países como Estados Unidos, a maior parte dos fundos está vinculada a universidades privadas menores, com menos alunos, e não às grandes instituições públicas”. Ele cita também um forte atrativo para as doações naquele país, ausente no Brasil: a alíquota máxima de imposto sobre herança nos Estados Unidos é, atualmente, de 40%, enquanto no Brasil não há um imposto federal com este fim e no estado de SP, por exemplo, é de 4%.

O docente também chama a atenção para um fator específico nos fundos criados nas universidades brasileiras, que é a possibilidade de o doador definir quais cursos ou mesmo docentes deverão ser financiados. Em resumo, a organização gestora, uma instituição privada, terá o poder de decidir as atividades a serem executadas por instituições públicas e comercializar o resultado obtido, sendo que suas decisões são tomadas com base em interesses de pessoas físicas e jurídicas de interesse privado.”

Confusões na comunidade e farol da resistência 

No período aberto às perguntas e manifestações durante o seminário, participantes oriundos de várias regiões do país fizeram uso da palavra para relatar as experiências em suas instituições. Foi comum a constatação de que o discurso das “vantagens e da necessidade” do investimento privado na educação e na pesquisa encontra eco em parcela expressiva da comunidade acadêmica.

Para Regina Ávila, da direção nacional do Andes-SN, isso não é de se estranhar. “Estamos sob ataque cerrado, com cortes profundos nos investimentos públicos e desqualificação do nosso trabalho, o que leva parte dos docentes a enxergar o investimento privado como solução, inclusive a acreditar que é sua responsabilidade buscá-lo”, avaliou.

“Nossa tarefa é nos contrapor a essa visão hegemônica e falaciosa, buscando ampliar os espaços de debate com a categoria e a sociedade, assim como estamos fazendo neste seminário”, opinou Érico Lopes Pinheiro de Paula.

Falando em nome das entidades organizadoras do evento, César Minto, membro da Adusp e da regional SP do Andes, ponderou que “falta um conjunto de informações que permita fazer relações de nexo e contrapor ao que se considera negativo na nova legislação sobre ciência, tecnologia e inovação no Brasil”. Nesse sentido, ele destacou as várias regressões que a “flexibilização” provocada pela nova legislação traz ao complexo público de ensino superior e de pesquisa: 

1) aumento da transferência do fundo público para empresas privadas e substituição de instituições estatais de pesquisa por organizações sociais (OS), ensejando a diminuição de concursos públicos;

2) docentes/pesquisadoras(es) de instituições estatais são autorizadas(os) a assumir direções de OS que realizem pesquisa e inovação tecnológica, podendo auferir rendimentos por atividades nos setores público e privado, com impactos negativos no trabalho de ensino, pesquisa e extensão, colocando em xeque o regime de Dedicação Exclusiva;

3) docentes paga(o)s com recursos públicos são liberados para atuar em empresas, podendo provocar crescimento aparente de P&D como “inovação”, mas atendendo interesses privados; 

4) o Estado poderá até ampliar seus gastos, enquanto as empresas tenderão a diminuí-los, uma vez que terão acesso a recursos estatais (financeiros e de pessoal); 

5) o número de patentes registradas por instituições públicas tende a cair, pois o registro passará a ser feito em nome das pessoas envolvidas e OS às quais estarão ligadas(os), sendo que a fonte de recursos para a manutenção dos registros continuará sendo os cofres públicos, enquanto a apropriação dos benefícios será privada; e 

6) a produção científica e tecnológica pública será direcionada por demandas do mercado, com prejuízos das atividades de C&T em áreas não rentáveis e, fundamentalmente, nas de ciências básicas e de ciências humanas.

“Temos que levar cada vez mais estas e outras informações, fazer o debate e estimular a mobilização da comunidade acadêmica”, concluiu.

Assista à gravação do Seminário “Política de Ciência e Tecnologia e mercantilização das universidades e dos institutos públicos de pesquisa” em https://youtu.be/LgroUT84fbI.

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